quinta-feira, 26 de maio de 2011

A FANTÁSTICA HISTÓRIA DO MAGRO DAS PALAVRAS

Era um homem de pensamentos largos e palavras gordas. Ingeria diariamente uma quantidade excessiva de palavras. Sentia fome de palavras. Precisava ouvir, ler e falar o tempo todo. Começou, quando criança, com uma ou duas palavras pequenas. E, depois de alguns anos, já ingeria um dicionário inteiro. Substantivos, verbos, adjetivos, advérbios, numerais, até interjeições ele comia. Quando mais velho, se tornaria um oráculo vocabular, acreditavam.

Sua necessidade era tanta, que palavras em português já não o saciavam da mesma forma que no início. Decidiu, então, ingerir palavras de outros idiomas. Algumas eram maravilhosas, mas também encontrou outras intragáveis. A essa altura não importava mais a qualidade, somente a quantidade. Entre os 18 e 20 anos, ingeria doses cavalares de palavras. A admiração mudara, e os amigos e família já temiam se comunicar perto dele. Onde ele ouvisse ou visse vestígios de comunicação, corria para lá. Era mais uma chance que ele não perderia. Mesmo que fossem entre os amigos que se comunicavam com o mesmo cardápio de palavras todos os dias. Antes ingerir as mesmas palavras do que nenhuma, pensava ele. Perdera o controle: era um vício.

O tempo o fez sentir que algo não estava indo bem. Sentia-se pesado, não conseguia caminhar com tanta facilidade sem que aquela imensa quantidade de palavras que carregava dentro de si não o deixasse fatigado. Sentia, também, que as pessoas o evitavam. Preconceito, certamente. Um jovem naquela idade em pura pele, osso e, entre eles, palavras. Pensou em usar remédios anti-comunicantes, em fazer qualquer tipo de cirurgia de redução de vocabulário, mas tudo isso seria drástico demais. Tentaria, com todas as suas forças, um regime lingüístico, uma dieta idiomática. Tentaria ingerir um vocabulário balanceado.

Media todas as suas palavras, antes de falar. Não ousava pronunciar palavras com mais de três sílabas cada para não fraquejar. Procurava conhecer o teor valórico de todas as palavras que ingeria. Exercitava-se todos os dias: pintavas, esculpia, modelava, dançava.

“_ Mais vinte quatro horas sem ler, sem falar e sem ouvir palavras”. Estava dando certo. Em pouco tempo perdeu quilos de palavras. Mas como tudo na sua vida tendia ao exagero, dessa vez não foi diferente.

Tornou-se um falante bulímico. Não permanecia mais com uma palavra dentro de si. Temia voltar a ser o que havia sido em conseqüência de ingerir, abusivamente, palavras. Não queria mais voltar a ser aquela bola de palavras. Nem nome ele usava mais. Identificava-se, caso muito necessário, como “Fulano”. Sem sobrenome, endereço, nem nada mais. Falava apenas palavras muito pequenas e que se expressassem por si só, como dor, medo, cor, luz, céu, não, lá. Vivia apenas de sorrisos, choros, olhares e do que sentia através de tato. Daquele jeito ele iria morrer. Ninguém pode sobreviver com tão pouco. Mas Fulano sobreviveu. Magérrimo de palavras como nunca havia sido, desde quando nasceu. Sentir-se-ia feliz em saber que as pessoas agora o chamavam de “O Magro das Palavras”, caso quisesse ouvir palavras.

Ao que aprendi, a sociedade precisa de fala para existir. Precisa de troca de informações: mentiras, fofocas, vantagens, novelas, essas coisas que se propagam através das palavras. Fulano sabia que em sociedade ele não poderia mais viver. A solução seria fugir. Para sempre. E ele o fez.Fulano hoje é um eremita e pode ser encontrado nos confins do Himalaia peregrinando em missão de solidariedade às pessoas que todos os dias são abatidas por excesso de palavras.

(Texto postado pela primeira vez em 10Abr2006)

Um comentário:

  1. O fulano-eremita está em silêncio? Porque palavras sobram, sejam elas de qualquer espécie... o silêncio está perdido, desqualificado. Quando ele aparece as palavras o disputam e o tempo da observação e da compreensão que vêm acompanham o silêncio já eram. Estamos assim, entre o egoísmo e a fuga? Pena. Ainda podemos mudar isso. Olha só, se o Fulano fala e fala, sem ouvir, sem compreender, sem compartilhar, quer as palavras sem entender o que elas são para os outros, ele já está sozinho, seja no topo do Himalaia ou ali mesmo do lado da sua casa.

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